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Izabela Jatene lança seu livro "Tribos Urbanas em Belém..."


A cidade é um grande palco


A antropóloga Izabela Jatene compartilha em livro, 25 anos depois, sua pesquisa de mestrado, uma profunda vivência para entender os grupos sociais juvenis na pós-modernidade. Skatistas, góticos, punks, mauricinhos e patricinhas, headbangers, gangues de rua, e principalmente o universo drag queen de Babeth e a Banda Bagaço, se encontram neste retrato escrito da Belém dos anos 1990.


“TRIBOS URBANAS EM BELÉM: Drag Queens - rainhas ou dragões?” será lançado dia 22 de setembro, pela editora Paka-Tatu, no Instituto de Ciências da Arte (ICA/UFPA), localizado na Praça da República. A escolha do local não ocorre por acaso, mas sim como um reencontro afetivo entre a autora e um de seus principais locais de pesquisa. “Eu sempre fui muito apaixonada pela Praça da República, em muitos momentos andei ali. Sozinha, andava, observava. E era um momento [na década de 1990] em que a praça estava em uma efervescência cultural verdadeiramente, estava em um momento que domingo, inevitavelmente, todo mundo ia parar ali”, lembra Izabela.


Ela também conta como realizou naquele local várias das entrevistas que deram origem ao livro. “Aquele grande quarteirão, aquele quadrado verde com o Theatro da Paz no meio, tinha espaços certos para os grupos certos. Atrás do [teatro] Waldemar, os headbangers; muitas vezes, se o pessoal punk chegasse, se aproximava, mas nem tanto. No monumento da República ficavam os skatistas, transgredindo - isso é algo que a gente precisa marcar, estamos falando de sujeitos que em todos os momentos não tinham medo e viviam espaços de transgressão mesmo”.


Tanto que o ponto de partida para a pesquisa foram as gangues, que naquele momento estavam vivendo um conflito extremamente intenso nas ruas da cidade. “Eu fazia descida [ida ao centro da cidade para pichação ou pequenos furtos/arrastões] com os meninos de gangue, e até hoje as pessoas dizem: ‘tu era muito maluca’. E realmente, porque eu me metia no meio de uma gangue e saía pela rua com eles. Estava num risco, na vivência de uma coisa que eu adoro, o ‘anthropological blues’, algo que o [antropólogo] Roberto da Matta fala muito, que é essa vivência da antropologia!”, exalta Izabela.


Logo, a territorialidade, o espaço ocupado na cidade por cada um desses grupos, também é um destaque do livro. Izabela conta que era comum sair à noite de carro e parar em determinados lugares. “Costumo dizer que eu vivi uma garimpagem noturna porque quando eu começava a notar um movimento de jovens caminhando, eu parava [o carro] onde eu estivesse, descia e seguia. Ia bater no cemitério da Soledade para observar os góticos. Se tinha uma festa no Ná Figueredo com os punks, eu chegava próximo”, exemplifica.


E assim, o livro acaba desenhando um grande mapa da Belém ocupada pela juventude dos anos 1990, rememorando inclusive locais como o Go Fish. “Era um bar de amigos nossos e funcionava na Rui Barbosa, onde você tinha o bairro de Nazaré com famílias mais tradicionais morando, que com certeza estranhavam aquele movimento - e aquilo, obviamente, era o máximo para a gente. Era como se a gente vivesse um processo de saída do gueto. Ele fervia com um grupo jovem extremamente diverso. Então, esse era um lugar que, primeiro, eu amava, eu fiz essa pesquisa muito feliz”, rememora a autora, que à época da pesquisa tinha 25 anos de idade.


BABETH E A BANDA BAGAÇO


Foi naquele bar, inclusive, que Izabela assistiu pela primeira vez ao show de Babeth e Banda Bagaço, objeto de pesquisa que agora ocupa metade do livro. “Eu me deparo com isso e penso ‘tem alguma coisa que está mexendo comigo’. E eu chegava e escrevia sobre o bar, toda quinta eu estava lá, e pensei ‘gente, eu estou apaixonada por isso e vou escrever sobre isso’. E eu começava a olhar que a Babeth e a Banda Bagaço era um desenho estético que aderia tudo que eu estava lendo da Pós-modernidade. Eu fiz um recorte mesmo. Olhei para aquilo e fiz: ‘minha teoria é essa’”.


Também é da vivência com esse universo drag que inspira-se o nome dado ao livro. “Eu vejo que a década de 1990 era um momento que elas [drags] estavam chegando, estavam saindo dos carnavais: ‘eu não preciso do carnaval para me montar, eu posso ir além’. E falo isso na pesquisa, de onde isso [a arte drag queen] vem. Existem mil discussões, mas eu fiz uma escolha de origem. Quem eram as drag queens e por que ‘rainhas ou dragões’? Porque eram exatamente os dragões da rainha, na Inglaterra, que para viverem a sua sexualidade, o que queriam viver, iam para os pubs londrinos vestidos de rainha, esse lugar que era de ‘eu preciso me esconder para ser’”, explica a autora.


Um dos elementos mais interessantes do livro é também a galeria que a autora disponibiliza com fotos do artista multimídia, professor e curador Orlando Maneschy, mostrando o universo drag de Babeth e sua banda. “O Orlando foi um pouco meu par naquele momento porque a gente ia junto para alguns lugares”, lembra. “Era importante esse registro, trazer essa construção imagética, porque faz com que a pessoa perceba justamente esse passo a passo [da Babeth se montando]. Ali o Orlando vai captando momentos e trazendo olhares, risos, e susto. Adoro uma foto da Babeth que ela está se arrumando meio Madonna e eu lembro ele chamando: ‘Babeth!’ Ela virou e ele pegou a foto, ela com o espelho atrás”.

Também é de Orlando Maneschy a foto escolhida para a capa do livro. “Eu era uma apaixonada e colecionadora de fofoletes na infância, então tem significado para mim”, comenta Izabela. “[O livro] Tem uma memória de perdas, de lugar, de saudades, daquela coisa nostálgica mesmo. A lembrança do Peter [o artista por trás da persona Babeth] é muito forte”, acrescenta a autora, que ainda mantém uma relação de proximidade com Chico, um dos integrantes da Banda Bagaço.


“E é importante ressaltar que um percentual [das vendas] do livro vai ser revertido para o Arte pela Vida, que é um comitê que sou voluntária - é a luta do Chico e de um grupo de pessoas enorme que convive com HIV”, diz Izabela, ressaltando ainda a importância de sua pesquisa e agora sua publicação em livro. “A gente precisa dessa produção, da desconstrução dos olhares ainda muito engessados, a gente precisa provocar as pessoas para conseguir pelo menos ver assim: ‘enxerga, não estou te pedindo concordância, só estou te pedindo que perceba que existe um mundo que é diverso’”. E diante de tudo que observou e viveu durante a pesquisa - e nesses mais de 25 anos desde então -, a autora diz que algo não se pode deixar de perceber: “a cidade é um grande palco!”


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Abaixo, a entrevista completa com a autora de “TRIBOS URBANAS EM BELÉM: Drag Queens - rainhas ou dragões?”


1- Foram 25 anos passados entre a conclusão da pesquisa e a publicação do livro. No entanto, a professora Miriam Abramovay, que assina o prefácio, afirmou que este é um livro que “apesar do tempo passado, é atual”. Você concorda com ela?


Realmente, tu tens aí um lapso bem significativo de tempo. Mas, primeiro, a contextualização tempo-espaço: você está na Pós-modernidade e o livro é todo ancorado na Teoria da Pós-modernidade. E é um tempo em que eclodem esses tipos de relações de sociabilidade. Elas iniciam essa força na década de 1990 (as formas de agregação juvenil, onde as pessoas se encontravam…), esse início, na realidade, de uma liberação deste ser ‘versus’ a sua sexualidade. As décadas de 1970 e 1980 dizem ‘isso existe’ e ‘nós temos espaço e nós vamos para esse espaço’. A década de 1990 começa a trazer essas pessoas e essa forma de ser e estar para a rua. E hoje isso está na rua, faz parte da vida cotidiana. Então, aquilo que num determinado momento o livro vem falando e eu relato da cidade, a partir das relações, dessa estética, dessa lógica de convivência, onde os elementos gregários, de acordo com a tribo que eu estava discutindo, são diferentes (o elemento gregário do punk, do headbanger, vai ser a música; o elemento gregário dos skatistas vai ser o esporte; o elemento gregário da maior parte do livro, as drag queens, vai ser uma estética, uma afirmação e desconstrução do masculino, vai ser o burlesco, a paródia, que é um pouco o que pega a Babeth e a Banda Bagaço), hoje isso vem para a rua sem muita estranheza, digamos assim. Isso está na vida cotidiana e é muito bacana a gente observar. E por isso, ele [o livro] é tão, talvez, atual.


2 - No livro, você narra sua relutância inicial em transformar pessoas em objetos (mesmo que fossem objetos de pesquisa) e sua dúvida sobre qual seria a real contribuição daquela pesquisa para a sociedade. Hoje você conseguiria responder essa pergunta?


Essa pergunta toca num lugar muito profundo da Izabela pesquisadora, antropóloga, até porque ontem eu estava em uma discussão sobre isso, sobre subjetividades, individuação, exatamente sobre esse lugar da gente pesquisador, onde a gente precisa fazer um esforço enorme de se distanciar daquilo que está tão próximo da gente e objetificar algo ou alguém, ou um grupo, ou uma cidade, para transformar ela em algo que a gente possa, digamos, descascar para ir até a profundidade daquele objeto e trazer a tona o que ele tem - a sua existência, os seus elementos, suas categorias (que a gente constrói no campo científico). Essa inquietação nunca saiu de mim, é fato. Essa mesma inquietação, eu falo sobre ela na tese de doutorado, volta em todos os trabalhos que acabo escrevendo. Mas, hoje, eu talvez esteja mais calma em relação a essa inquietação porque eu percebo que a narrativa do livro, a possibilidade de trazer uma etnografia daquele momento, daquela convivência, daquela ambiência, realmente marca e registra um espaço, uma história que hoje eu entendo mais a importância do que eu teria entendido na década de 1990.


Eu tinha ali 25 anos e hoje estou com 51, e naquele momento, entrar num mestrado em antropologia, entrar numa pesquisa de antropologia urbana num tema que não existia nada pesquisado em Belém foi extremamente desafiador. Tanto que o start do livro são as gangues de rua, que naquele momento estavam vivendo um conflito nas ruas extremamente intenso. Então começo o livro pelo meio, se a gente for ler. Quando comecei a ver aquilo, participando de alguns congressos fora, tive contato com a Glória Diógenes, que é do Ceará, ela fazia uma pesquisa que eu consegui cruzar; e ela dizia ‘continua aí’. De repente eu me deparo com outros grupos juvenis transitando pela cidade, e nesses outros eu digo: ‘eu preciso aumentar, elastecer essa cartografia’.


E não foi fácil, não tinha orientador pra mim em Belém. Eu era da primeira turma de mestrado, e talvez também daí a importância desse registro do livro dessa forma, porque ali a gente estava começando. O laboratório Napoleão Figueiredo estava começando pós-graduação, então nós entramos em temas como populações indígenas, populações ribeirinhas e a questão da pesca era muito forte. A questão do gênero já atravessava algumas discussões, mas as populações tradicionais faziam muito parte daquele universo. Então não tinha quem me orientasse.


Chegou uma professora visitante, e até hoje eu agradeço muito, que foi minha orientadora, a Maria Ângela D'Incao, da Unesp. E o tema dela era família, ela dizia: ‘como eu vou te orientar nisso? Não tem isso’. Ninguém sabia. Tu entendes o desespero? (risos) E eu disse ‘vamos juntos, eu não quero mudar de tema’. Porque realmente entrei num campo de paixão, porque eu vivia a noite de Belém. Eu ia para as boates, fazia descida [ida ao centro da cidade para pixação ou pequenos furtos/arrastões] com os meninos de gangue, e até hoje as pessoas dizem: ‘tu era muito maluca’. E realmente, porque eu me metia no meio de uma gangue e saía pela rua com eles. Estava num risco, na vivência de uma coisa que eu adoro, o ‘anthropological blues’, que é uma coisa que o Roberto da Matta fala muito, essa vivência da antropologia!


3 - Acho que existe uma personagem que precisa ser destacada: a Praça da República. Ela é como um recorte desse macrocosmos que é Belém. O quanto esse se tornou um local de pesquisa importante para o livro e como foi acompanhar as mudanças naquele ambiente ao longo dos últimos 25 anos?


Hoje mostrei o livro para uma colega, a professora Denise Cardoso e quando ela olhou, ela se encheu de emoção e perguntou: ‘por que você não lança na Praça da República?’ E eu sempre fui muito apaixonada pela Praça da República, em muitos momentos andei ali. Sozinha, andava, observava. E era um momento em que a praça estava em uma efervescência cultural verdadeiramente, estava em um momento que domingo, inevitavelmente, todo mundo ia parar ali.


E naquele momento [a década de 1990] ela era claramente dividida. Aquele grande quarteirão, aquele quadrado verde com o Theatro da Paz no meio, com o monumento da República ali, o Teatro Waldemar Henrique, ela tinha espaços certos para os grupos certos. Atrás do Waldemar, os headbangers; muitas vezes, se o pessoal punk chegasse, se aproximava, mas nem tanto. No monumento da República e aquela via que você sai e fica de frente para o Theatro da Paz, ficavam os skatistas, transgredindo - porque eu acho que isso é algo que a gente precisa marcar, estamos falando de sujeitos que em todos os momentos não tinham medo e viviam espaços de transgressão mesmo. Os darks às vezes chegavam lá pro meio do dia, por volta de 13h, começavam a transitar de forma bastante blasé, porque eles já tinham passado uma noite intensa. E isso começava mesmo a esquentar a partir de meio-dia. E ali você ouvia sons, observava atitudes, definições de espaços, conquistas de territorialidades muito próximas e muito próprias de cada grupo.


E é importante lembrar que de vez em quando um dos meninos das gangues aparecia. O que acontecia às vezes na madrugada, porque existia um campo de pixação, muitas vezes a praça era refúgio. Porque eles estavam também, obviamente, transgredindo. Então, hoje a Praça da República, observá-la ao longo desses anos, é outra praça, outro lugar, outros atores, a efervescência cultural tem outro significado, o campo do ser, um espaço aprazível, realmente também toma outro lugar; mas continua pulsando num domingo em Belém, e isso é lindo. Ela continua pulsando.


4 - Eu percebo que a noite também é uma característica muito presente quando se fala dessas tribos urbanas. Queria que você falasse um pouco dessa relação com a noite e como foi pra você, enquanto pesquisadora, ver essa outra Belém - a Belém da noite.


Um dos textos que me inspirou quando comecei a escrever foram os apaches, de uma historiadora ["Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros", de Michelle Perrot] que fala do movimento juvenil em Paris do século 19. Eu lembro que lendo sobre os apaches eu dizia assim: ‘olha o que eles são capazes de fazer!’. Era como se eles transitassem naquela Paris, realmente tivessem uma capacidade muito grande de se apropriar da cidade sem que ninguém pudesse detê-los. E aí tu ficas te questionando: ‘como é que isso acontecia?’ Aquele texto me fez observar cada vez mais essa Belém na noite, quem eram as pessoas que transitavam na noite? Quem eram as pessoas que faziam da noite o seu lugar do acordar?


Essa noite em Belém começava mais cedo, mas ela se estendia absurdamente e a gente chegava muito tarde. Começava no Go Fish, que era um bar de amigos nossos e funcionava na Rui Barbosa, no centro da cidade, onde você tinha o bairro de Nazaré com famílias mais tradicionais morando, que com certeza estranhavam aquele movimento - e aquilo, obviamente, era o máximo pra gente. Era como se a gente vivesse um processo de saída do gueto. E ali naquele bar fervia. Às quintas e, às vezes, sábados, tu tinhas apresentação da Babeth e da Banda Bagaço. Mas ele fervia com um grupo jovem extremamente diverso. Então, esse era um lugar que, primeiro, eu amava, eu fiz essa pesquisa muito feliz. A gente começava a noite no Go Fish, de lá a noite começava a estender, normalmente eu já ía para a Doctors (boate LGBTQIAPN+) porque normalmente a Babeth começava o show no Go Fish e fazia show na Doctors na sequência. Ir para a Doctors eu amava, melhores DJs, melhores músicas, dançava horrores, chegava em casa 5h, 6h feliz da vida.


Quando ía falar de outras tribos, eu saía de carro e parava em determinados lugares. Costumo dizer que eu vivi uma garimpagem noturna porque quando eu começava a notar um movimento de jovens caminhando, eu parava [o carro] onde eu estivesse, descia e seguia. E a maioria das vezes o Orlando [Maneschy] estava comigo, quando era a pesquisa da Babeth, mas, o resto eu tava só. Ia bater no cemitério da Soledade para observar os góticos. Se tinha uma festa no Ná Figueredo com os punks, eu chegava próximo.


No caso das gangues de rua, eu vivi um grau de exposição significativo. Eu lembro quando eu estava na Praça do Jaú, zona vermelha, na Sacramenta, dez da noite. A gente se disfarça mesmo, camiseta branca sem referência nenhuma, sapato mais simples possível. E eu levei uma pochete com um gravador. Cheguei lá, me cercaram. ‘Tu é da Data?’, ‘Não’. ‘O que tá fazendo aqui? A gente vai levar esse teu gravador, vai roubar o que tu tem aí’. Aí um pequeno me reconheceu: ‘ei, rapaz, ela é considerada do Down’. Ele era líder dessa gangue que eu mergulhei mais, que era Os Intocáveis. O líder chegou e ali a gente bateu muito papo, dali eu fiz algumas descidas para observar como eles atuavam no campo da pixação.


5 - Como mulher, eu sofri um pouco com o cenário que você apresentou. Na tribo dos headbangers, as mulheres presentes eram namoradas; entre os punks houve o ensaio de um movimento feminista punk, que foi abafado pelo excesso de “submissão” das meninas, como colocou um entrevistado; entre os skatistas, elas apenas estavam lá pra trocar olhares com os meninos; entre os pichadores/guangues, elas eram ativas, “mas não eram pra namorar”, pra namorar só podia ser “menina direita”. Houve um incômodo seu também naquela época sobre isso? E como você enxerga isso agora, com a perspectiva de 25 anos depois?


Eu não trato disso, confesso, e não tenho medo de confessar, não tinha noção do processo de objetificação que eu tenho hoje, porque hoje esse é um tema que eu investigo, falo, e isso nos coloca exatamente num processo de reflexão do quanto, ao longo de 25 anos, nós mulheres começamos a rever os nossos lugares dentro dos espaços coletivos. Se hoje eu tivesse que fazer uma pesquisa sobre coletivos juvenis, provavelmente eu faria sobre femininos. Naquele momento, o que você ainda percebia - e aí acho que vale a pena realmente pensar sobre o que tu estás colocando - que esse é um livro que traz o masculino. Agora também é importante ressaltar: é um livro que pretendeu dentro daquele campo trazer uma categoria, uma discussão que era pouquíssimo trabalhada naquele momento, que era a desconstrução desse masculino. E que não está na razão direta ou na oposição, ou na lógica paradigmática do feminino versus o masculino, não é isso. Quando a gente mergulha nesse universo, é um campo de homens sim. E aí a gente se vê novamente: a rua é um lugar de homens. A gente continua muitas vezes reforçando: você é mulher, você não pode andar na rua sozinha. Você imagina o que foi isso pra mim na década de 1990, que eu estava lá, não existia autorização pra eu entrar. Hoje, eu não consigo mais imaginar as adolescentes, os jovens, se colocando nesse lugar simplesmente de avec - eu sou a namorada, eu estou ali para observar -, é outro universo.


6 - Você diria que a formação de tribos urbanas ainda parecem ter as mesmas estruturas, motivações, ou é diferente?


Eu acho que é diferente. É importante primeiro a gente entender esse conceito [de tribo] é do [sociólogo francês] Michel Maffesoli, que ele se apropria e que a gente não usa mais. E o que eu te diria é que hoje a gente tem um elemento marcador determinante, que são as redes sociais, a internet e a mídia. Então, o que eu vivenciei naquele momento, eu não consigo enxergar claramente posto no dia de hoje como formas de encontros, digamos assim. Ao longo desses anos todos essa sociabilização veio para um campo de efemerização cada vez mais - são os ‘amores líquidos’ do [sociólogo polaco Zygmunt] Bauman. Ele não tava aqui [na pesquisa de 1990], adoraria que estivesse, mas ele vai estar na pesquisa do doutorado já. Os jovens continuam buscando processos de agregação, os elementos gregários mudam com muita rapidez. Acho que hoje a gente tem um elemento que pra mim é uma preocupação gritante, que é de saúde mental juvenil. O anonimato, a confusão e construção das identidades reais e virtuais, hoje isso está muito mais confuso, mais denso, e a juventude quer pulsar ao mesmo tempo. A gente não pode esquecer que 2013 foi um ano muito marcante pra juventude no brasil, a juventude veio pra rua depois de muitos anos. Então você aqui continua com um processo em que a juventude busca relações de aproximação sim, mas hoje é diferente.


7 - Como o interesse por ser etnógrafa/pesquisadora nasceu e como isso fez parte da sua vida?


Eu sempre fui muito curiosa, desde a infância, e minha mãe dizia que nunca me dissessem ‘não’ porque minha primeira pergunta era ‘por que não?’. E fui instigada a vida inteira para ser essa pessoa que quer ir além, que quer saber mais. Sou filha de uma socióloga, professora da universidade, pesquisadora, minha mãe era uma desbravadora, fez pesquisa em Alta Floresta, num momento onde o processo de assentamento era muito complicado, lá na década de 1970. Então esse olhar da pesquisadora, esse instigar, é o que precisa fazer parte de ti. Ninguém se torna um etnógrafo ou uma etnógrafa sem uma enorme disposição para sê-lo. Ir a campo, a observação participante, você chegar às cinco da manhã da boate morta de sono e dizer ‘eu preciso escrever, eu não posso dormir, senão eu não faço meu relato de campo’.


Naquela época não tinha computador assim, celular era uma coisa que não existia. Esse é um contexto muito interessante de observar, eu tenho uma memória muito afetiva disso. A minha mãe fez mestrado na Unicamp, década de 70, a dissertação foi escrita em máquina de datilografia Olivetti, eu lembro o barulho da máquina dentro de casa. O corredor da minha casa era um varal que meus pais fizeram porque já pensou o que era digitar toda a página de novo? Então o orientador corrigia, ela datilografava de novo só aquela parte e colava em cima da página. E o corredor da casa era a tese da minha mãe num varal. Eu já tive um computador para escrever minha tese, mas ele era gigante, com a impressora matricial, com aquela letra verde. Minha orientadora era de São paulo, então cada capítulo não tinha internet para mandar, mandava de Correio. E aí é legal a gente repensar o processo do ‘fazer pesquisa’.


Naquele momento, o sair na noite foi uma primeira barreira, acho que é importante marcar isso, o frio na barriga, milhões de vezes eu senti, agora realmente é do meu espírito, esse anthropological blues, sentar e observar é uma coisa que só a antropologia te dá. E essa escrita antropológica é muito deliciosa de fazer porque você escreve como se você estivesse contando sua história. É o meu relato mesmo da pesquisa, os meus medos, inquietações, o que deu certo, o que não deu. É um pouco isso.


8 - Entre as muitas tribos que você entrou em contato, por que dar destaque às drag queens? E esse destaque foi uma decisão tomada desde o início ou ocorreu ao longo da pesquisa/da escrita?


Aconteceu. O projeto de pesquisa foca nas gangues. Tanto que lendo, eu não trago todo o material gráfico das gangues para o livro porque era um material muito grande, eu faço um levantamento gráfico das pichações em belém. Naquele momento eu reproduzi todas as pichações [dos muros de Belém] porque muito do que ocasionava as brigas eram as queimações de pichação [pichar por cima da pichação de outra gangue]. Eu falo sobre a pichação como representação do Eu na vida cotidiana.


O encontro com a Babeth e a Banda Bagaço foi indo para o Go Fish. Eu me deparo com isso e penso ‘tem alguma coisa que está mexendo comigo’. E eu chegava e escrevia sobre o bar, toda quinta eu estava lá, e pensei ‘gente, eu estou apaixonada por isso e vou escrever sobre isso’. E eu começava a olhar que a Babeth e a Banda Bagaço era um desenho estético que aderia tudo que eu estava lendo da Pós-modernidade. Eu fiz um recorte mesmo. Olhei para aquilo e fiz: ‘minha teoria é essa’. É claro que quem conhece o Peter [pessoa por trás da persona Babeth] não tem como não se apaixonar por ele. Chegávamos cedo e sentávamos nós dois, ele com a coca-cola dele, batia papo, eu sou apaixonada por moda e aí vamos ver tecido… Chegou no final da pesquisa, eu montava os meninos, o Chico [integrante da banda Bagaço] conta isso até hoje. Eu estava direto com ele, é uma vivência. E eu falo hoje disso com muita emoção porque ele não está mais com a gente, e eu acompanhei muito as limitações físicas dele, e essas limitações desapareciam quando ele subia no palco, de Peter a Babeth eram quilômetros de distância. E aquilo o manteve vivo por muito tempo.

9 - Achei interessante você citar a RuPaul no livro, me fez pensar nessa grande quantidade de realities, programas, filmes com drag queens que nós temos hoje. E no livro você fala de um grande boom de programas em rádio, aparições em jornais, de drag queens, no ano de 1995, e na sequência um apagamento novamente. Há ainda um trecho do livro em que você fala como a mídia tinha um papel muito forte ao criar uma imagem ou discursar sobre o universo drag levando desinformação, criando uma imagem ruim até. Como você vê essa relação mídia - drag queens? Você nota mudanças ou semelhanças com o que você viu ali na década de 1990?


Eu vejo que a década de 1990 era um momento que elas estavam chegando, estavam saindo dos carnavais: ‘eu não preciso do carnaval para me montar, eu posso ir além’. E falo isso na pesquisa, de onde isso [a arte drag queen] vem. Existem mil discussões, mas eu fiz uma escolha de origem. Quem eram as drag queens e por que rainhas ou dragões? Porque eram exatamente os dragões da rainha, na Inglaterra, que para viverem a sua sexualidade, o que queriam viver, iam para os pubs londrinos vestidos de rainhas, esse lugar que era de ‘eu preciso me esconder para ser’. Eu lembro que essa dica veio da [professora] Luzia Álvares, ‘tu tens que pegar a Elisabeth Badinter’. Ela é uma referência em toda teoria de gênero, quando eu pego [o livro] ‘Um é o Outro’, eu olho e digo assim ‘eu sempre acreditei nisso’, sempre acreditei que o ser humano é bisexual, nós temos os dois universos em nós, isso é biologicamente e psicologicamente comprovado, mas no final da década de 1980 para 1990, isso realmente ganha espaço, então tu vai pegar um David Bowie dando a cara, dizendo ‘o que nós podemos ser?’. Tu vais olhar uma Annie Lennox com um campo de androginia gigantesco, então, esse lugar entre o masculino e feminino que eu observava que transitava com muita dificuldade, começa a dizer ‘não, estou aqui’. Isso era uma coisa descolada para nós, a gente achava aquilo o máximo, jovens, mas isso realmente começa a ganhar espaço. E este ganhar espaço, eu lembro o esforço que eu fiz para conseguir o livro do RuPaul naquele momento.


Eu falo da desinformação [pela mídia] porque o universo drag, não raramente, era muito confundido e na realidade rotulado como um universo do ‘homossexualismo’, e você tinha homens cis. A Andreia Gasparetti [drag carioca que veio fazer show em Belém] era um homem de 1,90, sarado, negro, super bonito, quando se montava era um negócio incrível. Ele era guardador de carro, começou a fazer show como drag e percebeu que aquilo dava mais dinheiro, e passou a trabalhar com isso.


Naquele momento a discussão trans ainda não estava posta, estava muito mais presente a discussão sobre as travestis do que trans. E aí também faço a diferenciação entre os dois. O universo drag é artístico, que muitas travestis passaram a vivenciar quando descobriram elementos. E acho que essa falta de cuidado [da mídia] era por desconhecimento mesmo, mas aí acho que hoje a gente ganha uma janela, hoje isso está posto. O que era Elke Maravilha, minha gente? Ela era uma drag, e a gente já assistia ela no Chacrinha. Acho que hoje essa estética, esse universo fica mais claro, porque ela é realmente compreendida no campo da arte cênica e a gente consegue entender isso e trazer a tona. Por isso a Miriam coloca [o livro] como muito atual, porque hoje isso está posto, hoje tem lugar.


10 - Voltando à questão da participação feminina nas tribos, mais uma vez elas estavam praticamente excluídas do universo drag. Mas, atualmente, muitas mulheres fazem drag - cito especialmente as “Themônias”, que realizam a festa “Noite Suja”. Como você vê essa mudança em especial, essa pluralidade de pessoas que utilizam a arte drag como forma de expressão de identidade, de suas vontades, de sua liberdade?


Isso para mim brilha os olhos, gera mesmo uma explosão de felicidade num campo de que você diz o seguinte: ‘a discussão da diversidade vem pra pauta, ela vem teoricamente pra pauta, com dados claros’. E você não tem mais o direito de cercear nada nem ninguém para ser o que quiser ser. Quando você percebe que qualquer pessoa pode expressar - desde que no seu universo individual ela não esteja causando nenhuma dor, nenhuma violência contra o outro -, o espaço é teu, o corpo é teu. Então é tu imaginar, as Themônias já em 2020, na segunda década do século 21, trazendo um universo que a gente viveu na década de 1990, e com homens e mulheres participando disso, se permitindo viver isso. Esse campo que vai abrindo é uma trajetória, não é simples, a gente ainda é marcado de muito preconceito, a gente vivenciou nesse país um momento muito perigoso com relação às expressões do ser, com realmente lugares de extremo preconceito, violência, retrocesso no campo dos direitos sociais, individuais.


Mas o que eu vejo, uma coisa que a gente não pode deixar de perceber, é que a cidade é um grande palco! E Belém é sim a metrópole da Amazônia, é sim o lugar que traz um elemento de agregação muito significativo.


As tribos se recompõem no movimento da cidade, se recolocam, por isso que talvez hoje, se eu fizesse uma observação, estaria muito mais plural porque a gente tem mais espaço, tem menos medo, tem mais conhecimento. Nós mulheres, inclusive, hoje temos os nossos campos. Nós temos um Instagram, várias redes sociais que são criadas para dizer: ‘onde é que a gente se une mesmo?’ Vai olhar o que é um canal dentro de uma rede social, segue um canal. Você começa a ver como a comunicação se apresenta, tu vais quase para uma convivência em uma relação de sociabilidade digital, e aquilo vira uma tribo, não é?


11 - Um dos elementos mais legais desse livro é também a galeria que você disponibiliza com fotos do Orlando Maneschy. Gostaria de saber um pouco mais sobre a captação dessas imagens, foram feitas especialmente para o livro? O quanto esse registro é interessante - e potente mesmo -, mostrando esse universo drag dos anos 1990?


O Orlando foi um pouco meu par nesse momento porque a gente ia junto pra alguns lugares. E ali, também, o iniciar as fotos foi muito aleatório. Tanto que tu vês uns registros como a Babeth no banheiro terminando a maquiagem até as fotos que ele já fez uma produção, que é quando o Orlando já estabelece um projeto, com o qual ele ganha o Marc Ferrez [prêmio de fotografia], que são fotos também sobre a noite em Belém. Então, essa galeria, só tem um pedacinho dela no livro, mas era importante esse registro, trazer essa construção imagética, porque faz com que a pessoa perceba justamente esse passo a passo [da Babeth se montando]. Hoje eu faria uma discussão de corpo maior nesse livro, eu traria um conceito que é ‘espírito de corpo’, que eu não conhecia na época. E ali o Orlando vai captando momentos e trazendo olhares, risos, e susto. Adoro uma foto da Babeth que ela está se arrumando meio Madonna e eu lembro ele chamando: ‘Babeth!’ Ela virou e ele pegou a foto, ela com o espelho atrás.


12 - Por último, uma pergunta bem clichê: Como você se sente lançando este livro?


Na época nem passava pela minha cabeça a história do livro e o Edney [Martins] que olha e diz assim: ‘não, isso não pode ficar engavetado’. Acho que nesse momento a gente percebe isso com essa identidade, porque nós tínhamos a mesma idade e vivemos estes mesmos espaços naquele momento. E ele diz: ‘a gente tem que publicar, isso é um registro, uma memória’. E a vida vai no cotidiano, ele acabou pegando, falou com a editora, e disse assim: ‘agora eu preciso que a autora entre aqui porque aqui eu não dou conta’. Eu disse: ‘ih, vai rolar mesmo esse negócio!’ E a feitura do livro também tem um significado, é um revisitar de muitos lugares.


Uma coisa que é muito importante: a marcação de tempo e o reconhecimento daquele momento, daquela mulher, daquela Izabela, daquela estudante de pós-graduação, daquela professora em 1990. Quando tu te olhas e no teu retrovisor tu te enxergas - e pra mim foi muito forte usar como última foto a minha com a Babeth juntas há 25 anos - eu olhava e pensava: ‘tu não sabes o quanto eu caminhei pra chegar até aqui’ (risos). Então quantas trilhas, quantas coisas eu já pesquisei, quantos temas eu já me interessei. E isso faz tanto sentido para mim!


Quando o livro chegou, eu olhava e a emoção de olhar e dizer: eu produzi, está aqui. A escolha das fotos, a revisão de texto, a diagramação, o papel. E o professor Armando, tão querido, diretor e dono da Paka-Tatu, dizia assim: ‘Ah, muito bonito, eu não vou fazer nesse papel, eu vou colocar nesse daqui’. E aí gerou um carinho! Nós dois [com Edney] fomos alunos do professor Armando, que foi professor do NPI. Quando o Orlando olhou: ‘que foto a gente agora vai colocar?’ E chegou uma hora que meu excesso de perfeccionismo disse: ‘a gente tem que pôr na rua, as pessoas tem que ler’.


E uma coisa me instigou, a minha dissertação era muito consultada dentro da biblioteca da universidade e o tempo inteiro as pessoas me pediam: ‘tu consegue me mandar uma cópia?’ Uma vez a bibliotecária falou: ‘olha, professora, a senhora precisa publicar essa sua dissertação porque a gente não pode deixar ela sair daqui, é um inferno porque a gente só tem tantas cópias e o tempo inteiro as pessoas estão querendo pesquisar’. Porque realmente é o primeiro trabalho da Universidade Federal do Pará sobre esse tema.


Eu amei a capa porque é esse anel de fofoletes, que é essa foto do Orlando, eu era uma apaixonada e colecionadora de fofoletes na infância, então tem significado para mim. Tem uma memória de perdas, de lugar, de saudades, daquela coisa nostálgica mesmo. A lembrança do Peter é muito forte. Boa parte dos meninos eu já não encontro mais. Chico eu tenho relação até hoje. E é importante ressaltar que um percentual do livro vai ser revertido pro Arte pela Vida, que é um comitê que sou voluntária - é a luta do Chico e de um grupo de pessoas enorme que convive com HIV e também faço essa marcação no livro, da importância daquele momento pós década de 80.


E é para a rua. O ato da escrita é talvez um dos atos mais altruístas que a gente tem enquanto ser humano, porque você perde completamente a posse daquilo que um dia estava dentro da tua cabeça, do teu coração, dentro de ti. Ontem eu tive a oportunidade de entregar para um pesquisador que é uma baita referência de juventude no Brasil, o [Paulo] Carrano. E quando entreguei para ele, ele olhou e disse: ‘nossa, isso aqui é muito atual’. A gente precisa dessa produção, desse olhar, da desconstrução dos olhares ainda muito engessados, a gente precisa provocar as pessoas para conseguir pelo menos ver assim: ‘enxerga, não estou te pedindo concordância, só estou te pedindo que perceba que existe um mundo que é diverso’. Existem pessoas que querem conviver, existe relação, existem redes de afetos que são construídas e a gente precisa deixar isso claro. Se isso é importante ou não é, para alguém que esteja pensando em bolsa de valores, talvez não, mas se isso é importante para um jovem que está querendo dizer simplesmente: ‘eu queria muito usar um cabelo assim e eu não vou porque eu vou sair e vão me olhar na rua e vão… Não, eu vou sair, e vou pintar minha unha se eu quiser pintar. A minha estética me pertence’. E essa é uma mensagem muito clara, mesmo que não esteja dita [no livro], porque aquele era um momento que eu não tinha nem essa consciência, mas a minha estética me pertence.


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